domingo, 9 de janeiro de 2011

Beleza efêmera

Angélica e Jonas, dois extremos. O garoto desde muito pequeno passava seus dias no jardim observando o nada. Sim, o nada, porque para Angélica aquilo era o nada. Ela sempre fora fascinada por fatos históricos, passava os seus dias lendo biografias dos grandes líderes e sobre as histórias das nações. Fatos, apenas fatos, nada além de fatos. Ela era vizinha de Jonas desde criança, eles cresceram juntos, porém distantes. Distantes em sonhos. Ela nunca gostou de contos de fada, pois em sua casa não havia espaço para a imaginação. O pai e a mãe, ambos eram advogados, ambos trabalhavam muito e ambos tinham os pés cravados no chão. E Jonas, bem, Jonas pertencia a um outro mundo. Ele gostava de contos de fada, inventava histórias, falava consigo mesmo e frequentemente perdia-se em seus pensamentos. Jonas não tinha pais, eles haviam falecido quando ele tinha apenas dois anos. Ele tinha apenas uma avó que lhe contava muitas histórias.

As crianças, quando pequenas, não brincavam juntas e pouco se falavam, pois Angélica não o compreendia e nunca soube como se comportar perto dele. Ela resignava-se a olhá-lho de longe entre as pausas da leitura de seus livros. Ela ficava sentada na escada com um grosso volume de livro histórico no colo, e ele fazia do jardim o seu reino da imaginação. Diferentes, distantes, e mesmo assim, tão próximos. Pela sua incompreensão ela era fascinada pelo garoto. Um certo dia, quando Angélica tinha dez anos e Jonas doze, ela o encontrou jogado na calçada observando uma trilha de formigas. Ficou parada olhando o garoto por pelo menos uma hora. Os olhos dele estavam fixos nas minúsculas criaturas e, de vez em quando, o garoto soltava uma risada. Sem compreender, ela pensou em voz alta "Ele deve ser maluco! O que ele vê? O que é tão engraçado?". Inesperadamente uma voz disse, "A beleza está nos olhos de quem vê". A avó de Jonas estava parada atrás dela também observando a cena. Angélica sorriu encabulada, a avó de Jonas deu-lhe um sorriu enigmático e ambas despediram-se com um aceno de cabeça.

Angélica não entendeu o sentido da frase, ela perdeu dias pesquisando em livros sobre ela, mas nada encontrou, não há nenhum fato histórico sobre "a beleza está nos olhos de quem vê" ela pensou. A fascinação cresceu e ela se aproximou de Jonas para tentar compreendê-lo e quem sabe descobrir o sentido daquela frase. Ela passou a se sentar no jardim com ele, próximo dele, não se falavam muito ainda, apenas olhavam-se mais de perto. Alguns anos depois eram conhecidos, acostumaram-se um com o outro, com a presença um do outro. Ele espiava os livros que ela lia e de vez em quando mostrava-lhe algo que ela nunca compreendia. O reflexo do sol nas folhas das árvores, as gotas de orvalho numa flor, uma pequena borboleta, o simples andar das pessoas na rua, o céu estrelado, o barulho do vento, as cores numa bola de sabão. Ela sorria polidamente, mas jamais compreendia a fascinação dele por coisas tão ordinárias. Quando ela perguntava o porquê, ele sempre respondia "a beleza está nos olhos de quem vê".

Os anos se passaram e eles, Jonas e Angélica, passaram a ser um só. Jonas fascinou-se por Angélica, assim como Angélica sempre fora fascinada por ele, mas sem jamais compreendê-lo. Ele sorria inesperadamente só de olhá-la, ele via uma beleza que só os seus olhos podiam ver. Ela aprendeu a sorrir em resposta ao sorriso dele e aprendeu a amar a incompreensão por Jonas. Com o tempo o comportamento pueril de Jonas foi se dissipando, ele ainda se fascinava pelas pequenas coisas, mas era mais cauteloso. Ele jamais deixou que seu fascínio pelas coisas invisíveis desaparecesse, ele apenas o mantinha para si mesmo e para a sua Angélica. Um dia caminhavam juntos pelo parque, ambos estavam no intervalo do almoço e logo retornariam ao trabalho, quando se depararam com uma cena infantil. Alguns meninos brincavam de jogar uma boneca de pano uns para os outros enquanto um menina pulava furiosamente tentando recuperá-la. Jonas olhava somente para a boneca e sorria aquele sorriso misterioso que só Angélica conhecia, ele via o que ela jamais conseguira ver.  

Andaram em direção à saída e antes de se despedirem ela perguntou a Jonas "O que você viu na boneca?". Ele sorriu e disse "Era bonito, e você sabe o porquê." Sorriram juntos, mas mais uma vez ela não o compreendia. Ele foi para a esquerda, e ela ficou parada na calçada o observando até que ele desapareceu na esquina. Então, ela foi para a direita. Direita. Os pés de Angélica se desprenderam do chão, ela se sentiu leve como uma boneca de pano, e então saiu flutuando pelo ar. Percebeu o mundo rodopiar ao seu redor. Um sonho, só podia ser um sonho, pois um silêncio surreal calou a multidão. Foi como ser tragada por uma forte onda do mar que te puxa e repuxa, ensurdece os seus ouvidos e que por fim te arremessa para fundo. E assim foi, assim ela tombou ao chão numa posição antinatural, assim como uma boneca de pano que foi arremessada pelo ar. No princípio seus olhos nada viam, estavam embaçados como que envoltos por um véu, mas aos poucos percebeu os olhos de pavor que a encaravam e somente no instante em que ela viu os gritos mudos, foi que o silêncio começou a se dissolver.

Não era um sonho. Ela ligou todos os pontos, o pavor nos olhos da multidão, os gritos, percebeu o carro projetado contra a calçada, o cheiro de borracha queimada e o cheiro ferroso característico do sangue. Com o corpo inerte, imóvel, brutalmente retorcido no acostamento, ela entendeu a cena. Ouvia as vozes lhe chamando, mas não conseguia falar, eles perguntavam-lhe o seu nome, se os compreendia, o que sentia, mas a sua voz havia se perdido em algum lugar no fundo da garganta. Ela apenas piscava, os olhos viam, os olhos viram o sangue cobrir-lhes as pestanas, escorrer pelo rosto e derramar pelo chão. Uma onda morna que lhe acariciava a face, uma onda que vertia dela e espalhava-se ao seu redor. Um manto carmim que a envolvia, tão quente, tão brilhante, tão vivo! Oh! como é bonito! ela pensou. Então, ela sorriu, não sabia se sorria por fora ou se somente por dentro, mas sorria porque enfim havia compreendido Jonas, de fato, a beleza está nos olhos de quem vê.